quinta-feira, 18 de junho de 2020

Formação

As manhãs tinham cheiro de café e de pão sendo esquentado na frigideira com manteiga. Pão de quilo, cortado em rodelas, bastante manteiga dos dois lados, na frigideira bem quente de alumínio. Uma iguaria como não há igual. Ainda hoje me faz salivar.
A presença dela, sempre tão bela, iluminava tudo, mesmo que não houvesse sol. Acho que era o sorriso no rosto e o brilho amoroso no olhar. Aquele jeito de acolher e de abraçar com o olhar. Assim começavam os dias. E eu, tão pequena e tão viva, achava que a vida era assim e passava devagar. 
Um jardim inteiro só para mim. Nele vivi muitas aventuras, morei numa fazenda, dei aulas numa pequena vila, corri, tão livre quanto a minha imaginação. Árvores frutíferas, flores, cheiro de pitanga, de limão e de jasmim. Pitty e Bilu, meus peludos companheiros. Embalos na rede, olhando o céu azul. Minhas canelas sempre roxas. Uma infância feliz.
Uma biblioteca repleta de livros. O medo das figuras de cobra e de arraia na enciclopédia. Uma tarântula, igualmente ameaçadora, presa em resina, que era enfeite ou peso de papel, nunca soube. Um toca discos e muitos vinis. E o chão da sala, palco para minhas brincadeiras: da casa da Barbie aos ensaios de ballet, com direito a Ferrorama. 
Minhas panelinhas de plástico recebiam  grãos de arroz, de feijão e farinha. Adorava vê-la cozinhar e ajudar na cozinha. Ajudava a fechar os pastéis, com os dedinhos molhados em água, contornando a massa, como ela me ensinou. E sempre roubava colheradas do guisado delicioso que iria recheá-los. Herdei esse dom, esse amor por cozinhar. Na cozinha, trocamos muitas confidências. Lembro bem da minha surpresa e indignação quando, do alto dos meus seis anos, descobri que as pessoas precisavam pagar até para morrer. Foi ali também que, muitos anos depois, ela me contou que sempre sonhou em cursar Psicologia. Sonho adiado pelo casamento, pela chegada dos filhos, pela vida que passa. Curioso que, na época de decidir minha profissão, anos antes dessa confidência, eu estava dividida entre a Psicologia e o Direito. E, naquele momento, ela não me contou. Acho que não queria me influenciar. Ingenuidade, pois sempre me influenciou. 
Desconfio que minha avó era meio mágica. Para ela, não havia dor ou mal que Anapion, Aspirina, Iodex, Elixir Paregórico, Vick e Hirudoid não resolvessem. E Biotônico Fontoura para abrir o apetite. Se caísse um cisco no meu olho, era Santa Luzia com seu cavalinho comendo capim que salvava. Para a pele, Alma de Flores e Creme Nívea. Para crescer forte, gemada.
Minha avó era uma contadora de histórias e sabia encantar. Contava da vez em que foi nadar em um rio em Rosário do Sul e quase morreu afogada, tendo sido salva por um rapaz muito bonito. Contava da vez que presenciou um rapaz ser literalmente decapitado ao se despedir pela janela do trem e não perceber que ele entraria no túnel. Contava de como o pai dela era especial e seus olhos brilhavam de amor por aquele homem que criou essa mulher tão incrível e, portanto, só pode mesmo ter sido um cara excepcional. Contava da mãe que morreu cedo.
Minha vó sonhava muito, assim como eu. E contava os sonhos. Alguns sonhos estranhamente se realizavam. Como a vez em que sonhou que uma galinha da vizinha havia sido morta e jogada pelo muro para o nosso pátio. Acordou e lá estava a galinha jazendo em nossa grama. Algo parecido me ocorreu uma vez. Sonhei que o carro não pegava e, ao sair para trabalhar, o carro não pegou. Gosto dessas coincidências que nos unem ainda mais. Gosto de pensar que somos parecidas. Natural que sejamos. Parte dela habita em mim. 
Quando bebê, eu só dormia se ela me embalasse e cantasse Terezinha de Jesus. Ainda hoje essa melodia tem o poder de me acalmar. Já maior, antes de dormir, um Pai Nosso, uma Ave Maria e um Santo Anjo do Senhor, que eu, apesar de não mais rezar, acho a oração mais bonita que há. Incontáveis vezes, ela deitou comigo e esperou que eu adormecesse. 
Quantas vezes eu olhava admirada a penteadeira, enquanto ela me mostrava a caixa de música que guardava seus anéis e seus segredos. Quantas vezes a vi se enfeitar, pentear os cabelos, se perfumar. Quantas vezes a vi cantar, a vi dançar, a vi sonhar.
As manhãs tinham cheiro de café e de pão esquentado na frigideira com manteiga. E a vida tinha cheiro de amor.


Daniela Annes Spera - Porto Alegre, 15 de junho de 2020

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