quinta-feira, 18 de junho de 2020

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Ele tinha as mãos firmes. E uma presença grande. Sonhou grandes sonhos para mim. Achava que eu seria juíza. Um dia eu quis mesmo ser. Não sei se por ele ou por mim. Mas a vida se encaminhou de trilhar outro caminho. Há tempos não tenho mais esse desejo. Penso que as coisas acontecem como tem que acontecer. Não creio que ele tenha se frustrado por não me ver de toga. Apreciava a minha essência, essa estava de acordo com os sonhos dele para mim. Tínhamos nossas discordâncias. Certa vez ele me disse que eu não podia imaginar o que era para um pai ver a família toda desmoronada. Quando o questionei o que era isso de família desmoronada para ele, a resposta veio rápida: todo mundo separado. Ele era de outra geração, não entendia esse negócio de separar. Eu respondi que isso não era desmoronamento, que era da vida, e que bom que as pessoas não se contentavam mais em manter relações que as faziam infelizes, que o importante era que todos na família tínhamos saúde, um meio de subsistência. Ele podia não concordar, mas me ouvia. 
Na primeira vez em que me separei, ele me disse, muito sério, que marido era um só e que ele não queria conhecer mais nenhum. Quando iniciei meu segundo casamento, ele me perguntou até quando, ao que respondi que enquanto eu estivesse feliz. Mas ele manteve a palavra e nunca quis conhecê-lo. Quando íamos em casa, ele não saia do quarto. Discordávamos, mas nos respeitávamos. Uma das belas coisas do amor.
O segundo casamento também findou. É da vida. E, após alguns anos, chegou o terceiro casamento. E ele, que achava que marido só valia o primeiro, se encantou pelo terceiro. Adorava conversar com meu marido, ficava verdadeiramente feliz quando íamos visitar, abria um sorriso, mostrava todo orgulhoso sua coleção de CDs. Sim, ele era de outra geração, mas soube acompanhar algumas modernidades. Acredito que reconheceu na minha essência o quanto eu também estava verdadeiramente feliz e em casa nessa nova e definitiva relação. 
Eu e meu marido acompanhamos juntos a perda de identidade dele. Maldita doença que vai matando aos poucos a identidade. Mas ele sempre manteve momentos de lucidez. Sempre soube quem eu era. Nunca se esqueceu de mim. Às vezes, poderia se confundir e trocar algum nome, mas sempre sabia e dizia "são minhas filhas", "são meus filhos". Não teve muita consciência da partida do amor da vida dele. Me dizia: "minha filha, hoje vi tua mãe". E eu embarcava com ele nessa realidade ilusória. De certa forma, eu a via também. De certa forma, ela nunca nos deixou, assim como ele também não.
A vida finda, a existência finda. Nossa carne tem prazo de validade. Mas a presença e o amor são eternos. Parte deles habita em mim, eles são parte de mim. Quando a minha carne perecer, espero que vivam na memória afetiva de minha filha, se um dia ela chegar. A morte não encerra o amor, apenas o transforma.


Daniela Annes Spera - Porto Alegre, 18 de junho de 2020

Formação

As manhãs tinham cheiro de café e de pão sendo esquentado na frigideira com manteiga. Pão de quilo, cortado em rodelas, bastante manteiga dos dois lados, na frigideira bem quente de alumínio. Uma iguaria como não há igual. Ainda hoje me faz salivar.
A presença dela, sempre tão bela, iluminava tudo, mesmo que não houvesse sol. Acho que era o sorriso no rosto e o brilho amoroso no olhar. Aquele jeito de acolher e de abraçar com o olhar. Assim começavam os dias. E eu, tão pequena e tão viva, achava que a vida era assim e passava devagar. 
Um jardim inteiro só para mim. Nele vivi muitas aventuras, morei numa fazenda, dei aulas numa pequena vila, corri, tão livre quanto a minha imaginação. Árvores frutíferas, flores, cheiro de pitanga, de limão e de jasmim. Pitty e Bilu, meus peludos companheiros. Embalos na rede, olhando o céu azul. Minhas canelas sempre roxas. Uma infância feliz.
Uma biblioteca repleta de livros. O medo das figuras de cobra e de arraia na enciclopédia. Uma tarântula, igualmente ameaçadora, presa em resina, que era enfeite ou peso de papel, nunca soube. Um toca discos e muitos vinis. E o chão da sala, palco para minhas brincadeiras: da casa da Barbie aos ensaios de ballet, com direito a Ferrorama. 
Minhas panelinhas de plástico recebiam  grãos de arroz, de feijão e farinha. Adorava vê-la cozinhar e ajudar na cozinha. Ajudava a fechar os pastéis, com os dedinhos molhados em água, contornando a massa, como ela me ensinou. E sempre roubava colheradas do guisado delicioso que iria recheá-los. Herdei esse dom, esse amor por cozinhar. Na cozinha, trocamos muitas confidências. Lembro bem da minha surpresa e indignação quando, do alto dos meus seis anos, descobri que as pessoas precisavam pagar até para morrer. Foi ali também que, muitos anos depois, ela me contou que sempre sonhou em cursar Psicologia. Sonho adiado pelo casamento, pela chegada dos filhos, pela vida que passa. Curioso que, na época de decidir minha profissão, anos antes dessa confidência, eu estava dividida entre a Psicologia e o Direito. E, naquele momento, ela não me contou. Acho que não queria me influenciar. Ingenuidade, pois sempre me influenciou. 
Desconfio que minha avó era meio mágica. Para ela, não havia dor ou mal que Anapion, Aspirina, Iodex, Elixir Paregórico, Vick e Hirudoid não resolvessem. E Biotônico Fontoura para abrir o apetite. Se caísse um cisco no meu olho, era Santa Luzia com seu cavalinho comendo capim que salvava. Para a pele, Alma de Flores e Creme Nívea. Para crescer forte, gemada.
Minha avó era uma contadora de histórias e sabia encantar. Contava da vez em que foi nadar em um rio em Rosário do Sul e quase morreu afogada, tendo sido salva por um rapaz muito bonito. Contava da vez que presenciou um rapaz ser literalmente decapitado ao se despedir pela janela do trem e não perceber que ele entraria no túnel. Contava de como o pai dela era especial e seus olhos brilhavam de amor por aquele homem que criou essa mulher tão incrível e, portanto, só pode mesmo ter sido um cara excepcional. Contava da mãe que morreu cedo.
Minha vó sonhava muito, assim como eu. E contava os sonhos. Alguns sonhos estranhamente se realizavam. Como a vez em que sonhou que uma galinha da vizinha havia sido morta e jogada pelo muro para o nosso pátio. Acordou e lá estava a galinha jazendo em nossa grama. Algo parecido me ocorreu uma vez. Sonhei que o carro não pegava e, ao sair para trabalhar, o carro não pegou. Gosto dessas coincidências que nos unem ainda mais. Gosto de pensar que somos parecidas. Natural que sejamos. Parte dela habita em mim. 
Quando bebê, eu só dormia se ela me embalasse e cantasse Terezinha de Jesus. Ainda hoje essa melodia tem o poder de me acalmar. Já maior, antes de dormir, um Pai Nosso, uma Ave Maria e um Santo Anjo do Senhor, que eu, apesar de não mais rezar, acho a oração mais bonita que há. Incontáveis vezes, ela deitou comigo e esperou que eu adormecesse. 
Quantas vezes eu olhava admirada a penteadeira, enquanto ela me mostrava a caixa de música que guardava seus anéis e seus segredos. Quantas vezes a vi se enfeitar, pentear os cabelos, se perfumar. Quantas vezes a vi cantar, a vi dançar, a vi sonhar.
As manhãs tinham cheiro de café e de pão esquentado na frigideira com manteiga. E a vida tinha cheiro de amor.


Daniela Annes Spera - Porto Alegre, 15 de junho de 2020

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Cresci com ela. Desde que me entendo por gente, ela sempre esteve ali. Fazia parte de um conjunto com outra igual porém maior do que ela, de centro. Era parte da nossa casa e habitava a nossa sala, de canto. Sempre gostei mais dos cantos.
Passávamos muitas horas na sala. Conversávamos, trocávamos confidências, bebíamos o café, assistíamos à televisão. Novelas, noticiários, filmes de terror, desfiles de Carnaval.
A sala era um dos tantos espaços de convívio familiar na nossa casa. Na verdade, convivíamos em todos os espaços. Na cozinha, na sala de jantar, na varanda, no pátio, nos quartos. Convívio era mesmo o nosso forte, não importava em qual cômodo. Essa presença tão forte por tão verdadeira me acompanha a vida inteira.
Mas voltemos à ela, uma das estrelas da sala. Eu a via assim, até hoje a vejo. Sua principal função era guardar o jornal do dia e dos dias anteriores também. Correio do Povo. Sempre se leu jornal em casa. E sempre se conversou sobre as notícias. Depois que saí de casa, guardavam recortes de notícias para mim, de coisas que poderiam me interessar, e me entregavam a cada retorno.
Hoje ela está na minha sala, nesta nova casa que tenho, embora a casa anterior ainda habite em mim. Sempre habitará. O conjunto se desfez, sua companheira estava quebrada, não havia conserto possível. Mas eu a acolhi, com o mesmo amor que sempre tive por ela, e a trouxe para esta nova casa para que seja estrela agora aqui. Não lemos mais jornais impressos. Hoje é tudo digital. Ela deve sentir falta dos jornais, penso. E, para saciar a fome de conhecimento que ela sempre teve, deixo que ela abrigue meus materiais de estudo. E assim seguimos as duas pela vida. Adaptadas a uma nova realidade sem jamais perder a nossa essência.


Mesa de canto com azulejos - Daniela Annes Spera - Porto Alegre, 13 de junho de 2020


Sobre café e amor

Nunca esquecerei como ela me recebia. Sempre com um sorriso e o abraço mais afetuoso que já conheci. Sempre com palavras amáveis, acolhedoras e tão assertivas. Me conhecia de uma vida inteira e sempre me oferecia um café passado, mesmo sabendo que eu preferia chá. Como se me convidasse a experimentar o novo, como se me estimulasse a sair da zona de conforto. Naquela época, eu preferia chá, ainda não havia sido seduzida pelos encantos de um bom café. Sempre após eu recusar o café, ela me preparava um chá. Chá de hortelã, o meu preferido, tal como o dela. Aprendi com ela. Tudo que sei, aprendi com ela. Ela tomava o café, requentado muitas vezes, pois ela passava o café pela manhã e requentava ao longo do dia. E eu tomava o chá. Muitas vezes, o café requentado dava lugar a um café passado na hora. Era a forma dela de mostrar o quanto estimava a pessoa. Era mais uma das tantas formas dela de amar. Conversávamos por horas, sem perceber o tempo passar. Sobre qualquer coisa. E eu me sentia em casa. Eu estava em casa. 
Muitos anos depois, esse mesmo café que representava amor me encontrou de outra forma, preparado por outras mãos. Mãos igualmente importantes e amorosas na minha vida. E, então, nova amante de café, comecei a beber do café dela também. Lamento que tenham sido poucos anos degustando o café dela. Logo ela não pôde mais preparar o café ou o chá. E então foram as minhas mãos que cuidaram dela. Com o mesmo amor. Já não havia mais horas de conversas, pois as palavras se perderam pela obstrução de uma artéria. Mas seguimos com nossas horas de presença e de amor. Ela conversava comigo através dos olhos. E nunca deixou de sorrir. E ela também sabia sorrir com o olhar.


Hoje eu bebo o café e lembro dela. Uma saudade que sempre me habita. Uma ausência que se faz tão presente. Um amor tão grande que transcende a vida. Numa outra casa que hoje é minha e é dela também. E ainda converso com ela. Aprendi a conversar com os olhos. Olhos repletos de saudade e de amor.

Daniela Annes Spera - Porto Alegre, 10 de junho de 2020.