Ele tinha as mãos firmes. E uma presença grande. Sonhou grandes sonhos para mim. Achava que eu seria juíza. Um dia eu quis mesmo ser. Não sei se por ele ou por mim. Mas a vida se encaminhou de trilhar outro caminho. Há tempos não tenho mais esse desejo. Penso que as coisas acontecem como tem que acontecer. Não creio que ele tenha se frustrado por não me ver de toga. Apreciava a minha essência, essa estava de acordo com os sonhos dele para mim. Tínhamos nossas discordâncias. Certa vez ele me disse que eu não podia imaginar o que era para um pai ver a família toda desmoronada. Quando o questionei o que era isso de família desmoronada para ele, a resposta veio rápida: todo mundo separado. Ele era de outra geração, não entendia esse negócio de separar. Eu respondi que isso não era desmoronamento, que era da vida, e que bom que as pessoas não se contentavam mais em manter relações que as faziam infelizes, que o importante era que todos na família tínhamos saúde, um meio de subsistência. Ele podia não concordar, mas me ouvia.
Na primeira vez em que me separei, ele me disse, muito sério, que marido era um só e que ele não queria conhecer mais nenhum. Quando iniciei meu segundo casamento, ele me perguntou até quando, ao que respondi que enquanto eu estivesse feliz. Mas ele manteve a palavra e nunca quis conhecê-lo. Quando íamos em casa, ele não saia do quarto. Discordávamos, mas nos respeitávamos. Uma das belas coisas do amor.
O segundo casamento também findou. É da vida. E, após alguns anos, chegou o terceiro casamento. E ele, que achava que marido só valia o primeiro, se encantou pelo terceiro. Adorava conversar com meu marido, ficava verdadeiramente feliz quando íamos visitar, abria um sorriso, mostrava todo orgulhoso sua coleção de CDs. Sim, ele era de outra geração, mas soube acompanhar algumas modernidades. Acredito que reconheceu na minha essência o quanto eu também estava verdadeiramente feliz e em casa nessa nova e definitiva relação.
Eu e meu marido acompanhamos juntos a perda de identidade dele. Maldita doença que vai matando aos poucos a identidade. Mas ele sempre manteve momentos de lucidez. Sempre soube quem eu era. Nunca se esqueceu de mim. Às vezes, poderia se confundir e trocar algum nome, mas sempre sabia e dizia "são minhas filhas", "são meus filhos". Não teve muita consciência da partida do amor da vida dele. Me dizia: "minha filha, hoje vi tua mãe". E eu embarcava com ele nessa realidade ilusória. De certa forma, eu a via também. De certa forma, ela nunca nos deixou, assim como ele também não.
A vida finda, a existência finda. Nossa carne tem prazo de validade. Mas a presença e o amor são eternos. Parte deles habita em mim, eles são parte de mim. Quando a minha carne perecer, espero que vivam na memória afetiva de minha filha, se um dia ela chegar. A morte não encerra o amor, apenas o transforma.
Daniela Annes Spera - Porto Alegre, 18 de junho de 2020